Através de estudos e pesquisas sobre a história dos sapatos desde a pré-história, há uma questão recorrente que salta aos olhos e torna-se muito expressiva no século XX: a paixão feminina pelos calçados. Ao me deparar com tal constatação orientei minha pesquisa através de publicações já existentes sobre a simples história. Fui destacando e colocando em evidência tal relação e cheguei à conclusão de que certamente, os calçados das mulheres são indicadores, têm alma e retratam desejos, intenções, personalidade, fetiches, sensualidade e até sexualidade. Os calçados revelam momentos históricos e políticos, tendências sociais, psíquicas, cultos e ideais.
Inicialmente, ter um revestimento pedestre significava apenas uma proteção para possíveis lesões que os caminhos rudimentares habitados por nossos antepassados pudessem significar. A partir da humanização, começamos a sentir que nossos pés eram sensíveis, erógenos, amoráveis, respeitáveis, acarinháveis e o mais libidináveis quanto podemos imaginar. Passamos a calçarmo-nos, a preservarmo-nos e à nossa sensibilidade. A partir daí os pés foram escondidos por séculos e mais séculos, até que quando vieram à cena ou voltaram, puderam viver suas projeções.
Figura 1 – Stuart Waizman para Martinique (Anos 80)
Indo além da funcionalidade essencial, o requinte imaginativo de recursos ornamentais, gerador de modas, fez uma permanente adaptação da pura e simples função de calçar os pés na graça de enfeitá-los, ou quem sabe, destacá-los. Nesse processo, as mudanças de comportamento foram causadoras de mudanças no designer dos calçados e as razões para o uso deste ou daquele modelo. Os sapatos ganharam alma, as formas e os materiais se multiplicaram e pontuaram características de quem os usavam.
As mulheres acharam nos sapatos meios de se comunicar, beleza e destaque fizeram-nas, literalmente, cair de paixão iniciando uma relação de entrega e cumplicidade. Este é, evidentemente, o ponto comum na história dos sapatos, que atravessou décadas, sociedades, culturas, pensamentos e ideologias, bem ali, nos pés das mulheres.
Nuances de uma Paixão
Há séculos que as mulheres perdem a cabeça por causa dos sapatos. Josephine, a primeira esposa de Napoleão Bonaparte desfilava com 5 ou 6 pares diferentes todos os dias. Maria Antonieta jamais usava o mesmo sapato duas vezes, possuía mais de 500 pares, catalogados por cor, modelo e data. Alguns tão delicados que só os podia usar sentada, pois não serviam para caminhar. E como não falar de Imelda Marcos, a famosa ex-primeira dama das Filipinas, que possuía mais de 3.000 pares.
O mundo está cheio de mulheres com histórias ligadas aos sapatos. A rainha da Inglaterra, por exemplo, sempre tem dois pares de sapatos iguais em seu guarda-roupa, e quando viaja, leva consigo modelos em dobro, para substituições em caso de acidentes. Marilyn Monroe adorava sapatos, todos de salto, bem provocantes, e os considerava mais importantes que a lingerie. Greta Garbo, que não tinha um pé delicado, dedicava especial atenção aos seus sapatos, sempre discretos para não fazerem notado o tamanho de seus pés.
Registros Históricos
Não há dúvidas de que os sapatos são uma das grandes paixões femininas. A preocupação com o adorno dos pés acompanha a humanidade desde períodos pré-históricos. Os calçados chamam a atenção a ponto de passarem uma forte impressão sobre a posição social e econômica de quem os usa. Nada mais desagradável do que um pé mal calçado, mesmo que se esteja vestindo uma roupa de milhares de dólares.
Os pés são, além de ponto estético, uma área de grande sensualidade em todas as culturas. Freud postulava que o sapato feminino simboliza a vagina. O ato de calçar os sapatos, portanto, seria uma simbologia do ato sexual. Estudos mostram que há pinturas em cavernas da França e da Espanha indicando a existência de calçados já em 10.000 a.C. No Egito antigo, por volta de 3.100 a.C. a 32 a.C., apenas os nobres usavam sandálias de couro. Os Faraós usavam sandálias deste tipo adornadas com ouro. Os Etruscos que dominaram toda a região leste da Itália por volta de 4.000 anos atrás, usavam botas altas, amarradas, com pontas viradas, uma clara evidência da importância de uma suposta moda, uma vez que o clima quente da região tornava o uso de botas desnecessário e até desconfortável. Já os gregos antigos, chegaram a usar um modelo diferente em cada pé e demonstravam a importância do calçado na sociedade da época: não se usavam sandálias dentro de casa, mas em público elas eram indispensáveis.
Um símbolo de poder e posição social, os sapatos eram símbolos de poder também na tradição anglo-saxã, onde na ocasião da cerimônia matrimonial, o pai da noiva entregava ao noivo um pé de sapato da filha simbolizando a transferência de autoridade. Durante o Império Romano os calçados denunciavam a classe ou grupo social do indivíduo. Os senadores utilizavam sapatos em cor marrom, em modelos que amarravam na panturrilha por quatro tiras de dois nós. Os cônsules usavam o branco, e os calçados das legiões eram as botas de cano curto. Mulheres calçavam sapatos brancos, vermelhos, verdes ou amarelos.
Na Idade Média a maioria dos sapatos tinha a forma das atuais sapatilhas e eram feitos de couro. Nobres e cavaleiros usavam botas de melhor qualidade. O rei Eduardo (1272-1307), da Inglaterra, padronizou a numeração dos sapatos. No mesmo país, em 1642, há o registro da primeira produção "em massa" de sapatos em todo o mundo: Thomas Pendleton fez quatro mil pares de sapatos e seiscentos pares de botas para o Exército. Os sapatos e sandálias com plataformas, tão em moda nos dias de hoje, existem desde o século XV. Chamados por chapins podiam chegar a alturas absurdas de até 65cm. No século XVI, na Inglaterra, foi promulgada uma lei que permitia ao marido anular o casamento se a noiva falsificasse sua altura usando chapins durante a cerimônia. Dizem que foi Catarina de Médici quem inventou os sapatos de salto alto, já que, delicada e mignon, encomendou sapatos com altos saltos para parecer mais magra e alta durante a cerimônia de seu casamento com Henrique II.
Durante a Revolução Industrial, no início no século XVIII, na Inglaterra, as máquinas passaram a produzir calçados em larga escala. Nas décadas de 1880 a 1890, a decência e o decoro demandavam que as damas usassem sapatos de cor escura. Até o ano de 1822 os dois pés do sapato eram iguais. Foi neste ano que sapateiros norte-americanos criaram o sapato torto, em que o pé direito é diferente do pé esquerdo. Isto tornou a moda dos pés muito mais confortável. Sem dúvida os sapatos tiveram até aí sua grande importância de cunho social e até moral. No século XX, novos materiais, técnicas e tecidos entram na produção, que passou a ser setorizada entre design, modelagem, confecção, distribuição, entre outros.
Foi nesse período (meados de 1900), que os sapatos deixaram de ser fabricados por simples artesãos e surgiu o novo personagem da moda, o bottier, ou sapateiro, e/ou melhor ainda, o designer de sapatos. No que diz respeito a design, neste século surgiram inúmeras possibilidades de saltos e propostas de sapatos, sapatilhas, sandálias, mules e botas, entre tantos mais, de diversos materiais. Além disso, a necessidade dos atletas de obterem um melhor desempenho em competições originou um novo segmento na indústria, voltado aos esportes, e que possibilitou a criação de tênis tecnológicos, que invadiram o vestuário de todos grupos sociais. A explosão da moda entre o público médio, à partir dos anos 80, também possibilitou um aumento no número de pessoas que passaram a consumir calçados de grife. Tanto os mais simples quanto aqueles assinados por grandes estilistas, que contribuíram ainda mais para a ascensão dos sapatos à condição de verdadeiros artigos de luxo.
Sapatos significantes ou significados?
Não há como negar que os sapatos possuem uma linguagem própria que estabelece padrões sociais e até sugerem interpretações das mais diversas. Sapatos feitos de materiais exóticos como crocodilo e avestruz representam sensualidade e poder econômico. Couros duros e pesados possuem uma conotação mais masculina e forte, e o uso de materiais mais delicados em sapatos do mesmo modelo sugerem individualidade extrovertida e brilhante. Couros macios indicam uma sensualidade discreta enquanto os mais duros são uma afirmação de virilidade. Os modelos sapatilhas, mules, babuches, sapatos de cardeal e sandálias de salto alto possuem uma conotação sexy ao passo que, os sapatos tipo Oxford, tamancos, mocassins, muitos modelos de sandálias e botas de salto rasas, são considerados calçados sensatos.
Ao longo de toda a história um traço contemporâneo
Mas a grande contemporaneidade dos sapatos está no fascínio que eles exercem sobre as mulheres. Através de anos e até de séculos, mesmo sem ter sua importância em evidência, a preocupação com os sapatos, o fetiche, a sedução através deles, velada ou não, é que atravessou os tempos e ainda é visitada nos dia de hoje. Isto independentemente das tendências, dos designs, dos saltos, estilos e materiais. Durante grande parte da história, os sapatos das mulheres mantiveram-se na obscuridade, ocultos debaixo do volume dos saiotes ou do balão da crinolina (armação feita de arcos usada para dar volume às saias, apareceram na moda nos séculos XV e XVI e a última retomada de seu uso foi no século XIX).
Embora fossem um dos mais escondidos adornos femininos, ironicamente, os sapatos eram e continuam a ser um dos mais reveladores. Já foram até estudados por psicólogos, explorando-se até a exaustão todos os significados ocultos dos sapatos, considerados desde símbolos fálicos até recipientes secretos. Refletem o estatuto social, a situação econômica de quem os calça e também um registro pessoal de nossas vidas. Preservam o passado enquanto lembranças de ocasiões em que foram usados, desencadeando memórias tão vivas como as de um álbum de fotografias - comoventes, como o primeiro sapatinho de uma criança imortalizado em bronze ou com o doce sentimento dos sapatos de noiva guardados na sua caixa original. A extravagância de um laço atrevido, o apelo de uma cobertura de contas ou de espirais bordadas, tudo conduz a uma atração fatal.
A indefinível atração por um novo par de sapatos desencadeia intensas fantasias pessoais. Apaixonamo-nos por um sapato fabuloso à primeira vista, seduzidas pela inclinação de um salto ou de uma linha sensual. O impulso da compra nada tem a ver com a necessidade e sim com o desejo. Quando se trata de sapatos, não importa se são práticos ou confortáveis. Freqüentemente, não assentam como uma luva nem se ajustam aos contornos naturais do pé. Mas isso realmente, não parece interessar. Afinal o antigo brogue irlandês (primeiro tipo de sapato, usado desde a Antiguidade com sola de couro fixada ao tornozelo a aos artelhos por correia, também usado pelos camponeses até os séculos XVI e XVII e ainda encontrado nos campos mais retirados da Irlanda e nas terras altas da Escócia), bem como o tamanco e a sandália dos egípcios são, na verdade, os únicos sapatos que a humanidade precisa. E nada teria mudado, se não existissem no mundo cabeças como a dos grandes talentosos criadores de sapatos que foram capazes de sacudir a poeira, e transformar as antigas fórmulas em ousadias. Definitivamente, desta forma, fizeram com que um simples calçado se tornasse célebre e percorresse as fantasias femininas, ganhando status e se tornando objetos – símbolos. Assim sendo, na intersecção entre fantasia e realidade, as mulheres não hesitam em preferir a frivolidade ao conforto. Os sapatos práticos impõem respeito, mas os saltos altos incitam à adoração.
Ao longo da existência humana percebem-se valores e importâncias diferentes atribuídos aos sapatos. No século XX ocorreu a grande transformação dos artesãos que desenvolverem-se ou foram substituídos pelos sapateiros, equiparando-se aos costureiros e afirmando-se como criadores. Este movimento permitiu aos sapatos apropriarem-se da sua condição de objetos de desejo e sublinhou a sua importância na composição das toillets, valorizando as pernas, a silhueta e até a personalidade daquelas que os usavam. Essa nova ótica veio ratificar a paixão feminina pelos sapatos que ao meu ver, é o seu traço contemporâneo ao longo de toda a sua história. Independentemente de qualquer influência que se refira ao objeto sapato, suas formas, cores, texturas e mesmo momento histórico. Sua contemporaneidade se refere ao objeto de desejo, ao simbolismo, às fantasias e ao riquíssimo universo feminino e suas nuances. Evidencia em qualquer época, ou sociedade o vasto e profundo relacionamento feminino com os seus sapatos.
Referências Bibliográficas
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