Carmen Miranda nasceu em Portugal em 1909 e veio para o Brasil em 1910. Ela viveu sua infância no Rio de Janeiro, e, em 1930, período no qual o país passava por uma discussão sobre identidade nacional, estabeleceu-se como cantora, trabalhou no rádio e depois no cinema.
Na ocasião, o país era governado por Getúlio Vargas, um líder polêmico com uma visão nacionalista e que celebrava um Brasil novo. Vargas apoiava a arte culta, mas também reconhecia a arte originária de outros setores da sociedade. Neste contexto de exaltação do país e firmação da cultura popular, a artista, já reconhecida como intérprete de samba, teve o apoio do presidente para difundir este etilo musical como a nova canção popular brasileira, e para firmar-se como representante da nação.
O cenário dos anos 30 e 40 com sua tentativa em estabelecer uma identidade para o Brasil, pode-se aplicar o conceito de tradição inventada de Eric Hobsbawn, segundo o qual:
por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.
Este conceito permite estabelecer uma relação entre a identidade brasileira, o samba (de origem dos negros baianos) e a baiana de Carmen Miranda.
A primeira vez que a cantora apareceu vestida de baiana foi no filme Banana da Terra. O traje estilizado foi inspirado na música de Dorival Caimmy, O que é que a baiana tem, na qual era exposta minuciosamente a indumentária destas figuras. Ela incluiu em sua fantasia a sandália plataforma, concebida, possivelmente, para aumentar a pequena notável.
A imagem da baiana tem como atributo o movimento, seu corpo nunca se apresenta parado, e a fragmentação, as peças que montam sua composição têm diferentes origens. Essa particularidade permite que ela seja sempre reinventada sem deixar de ser baiana. Foi exatamente essa especificidade que admitiu a bricolagem criativa de Carmen. Ela retirou algumas características da roupa tradicional e acrescentou outras, originárias de suas referências.
Para Tânia da Costa Garcia a figura da baiana tem força de símbolo e esta característica reanima sua presença marcante na constituição de uma identidade nacional, “a presença da baiana tornou-se de tal forma marcante na vida da cidade, que foi incorporada como personagem nas festas e diversões populares, como o carnaval de rua e o teatro de revista. Deslocada de contexto, a baiana começava a fazer parte de um processo de simbolização”.
O primeiro samba gravado, pelo telefone, provavelmente surgiu em uma roda de pagode realizada no Rio de Janeiro na casa de uma “tia baiana”. Este era um espaço de reuniões dos negros baianos com outros negros e brancos de semelhante situação econômica, além de alguns membros da elite simpatizantes do excêntrico destes encontros.
Da casa das tias baianas o samba seguiu para a indústria do disco, para o rádio e o cinema e tornou-se a canção popular brasileira. O repertório de Carmen Miranda estava carregado de música popular de compositores do Rio de Janeiro da década de 30.
Estas canções davam destaque à miscigenação do universo africano com a cultura da Bahia: à mulher, à culinária ao candomblé e a expressões desse mundo. Os compositores ao associar o samba (canção popular brasileira), à Bahia (mito de origem da terra brasileira), reforçaram a idéia destes como parte das representações em torno da identidade da nação.
Ao agregar o samba e a baiana, dois símbolos nacionais, à sua imagem, Carmen fortaleceu o status de representante do Brasil, no país e fora dele. Em 1939 Lee Schubert, um empresário do show business norte-americano, conheceu a cantora numa apresentação que a artista fazia no Cassino da Urca, e identificando nela a fantasia exótica que o povo norte americano tinha da América Latina, levou-a para Nova York. Em terras estrangeiras a cantora migrou do show business para o cinema.
Ela trabalhou para a Twenty Century Fox de 1940 a 1946 sempre fazendo papéis de baiana para Hollywood.
Em sua primeira entrevista nos Estados Unidos, Carmen Miranda parecia uma boba e foi essa idéia que os americanos compraram da artista. Para eles, a figura da cantora estava vinculada ao atraso da América Latina: uma personagem voluptuosa, engraçada, burra e desastrada. Isto explicava a natural supremacia dos Estados Unidos sobre a América Latina, e a artista, para agradar a este público, favorecia a propagação desta opinião.
Ela serviu também à terra do Tio Sam como figura viva da política da boa vizinhança, que entre outras ações, elegeu o cinema como um meio para efetivar os interesses dos Estados Unidos na América Latina. A artista era a personificação da América Latina wilderness, “uma espécie de lugar imantado que pode exercer sobre o ser humano civilizado atração e repulsa”. As rositas e chiquitas interpretadas por ela com “temperamento impulsivo, sensualidade a flor da pele, melodia a flor dos lábios: torpor animal” correspondia à idéia dos norte americanos sobre a América Latina.
Segundo a cantora, parte do seu sucesso na terra do Tio Sam incidia do traje extravagante que usava, o qual era novidade, e por essa razão despertou a atenção geral. Nos Estados Unidos a baiana de Carmen Miranda estava nos manequins das vitrines de Nova York.
“Ela focou no ponto fraco da nação: a moda feminina. Bonwit Teller mandou fazer um molde de seu rosto para que os manequins nas vitrines mostrassem a audácia brasileira. Chapéus, jóias, sapatos e roupas sofrem a influência da bomba brasileira. Há um ano Carmen Miranda era apenas um nome. Hoje ela é moda”. Estes seriam os primeiros passos da artista no cenário da moda.
O Brasil representado pela cantora que recebia destaque no exterior não era uma unanimidade entre os brasileiros. Por um lado, Carmen era portuguesa de nascimento, por outro, ela cantava samba, música de origem negra que remete a um passado atrasado, e por tal razão, está desaprovada para ser símbolo nacional.
Além disso, suas personagens no cinema eram cômicas e inferiores quando comparadas às personagens das mocinhas norte americanas. Caracterizavam-se pela sensualidade exagerada, malandragem e pouca inteligência e, mesmo os brasileiros que acatavam o samba como representação do país, recusavam a idéia brasileira divulgada pela cantora no exterior por se sentirem ridicularizados.
Depois de sua morte em 5 de agosto de 1955, a artista continuou sendo assunto quando se falava em música, cinema, carnaval, brasilidade e moda. Na década de 90 a cantora foi requisitada pela moda no Brasil que estava se organizando e tentando estabelecer um calendário unificado para os desfiles. A imagem de Carmen Miranda tornou-se tão importante para esse setor que a artista foi resgatada durante todo o processo de estruturação do campo da moda no país.
O conceito de campo utilizado neste trabalho fundamenta-se na teoria de Pierre Boudieu. Segundo o autor, o campo é um espaço social autônomo onde se reúnem os agentes – instituições de produção e difusão – investidos de um capital simbólico específico capaz de permitir acesso ao seu interior e participação nas competições. O campo tem a incumbência de legitimar um determinado setor. Nesse caso específico o setor é a moda.
O percurso de unificação dos desfiles teve início em 1994 com a primeira edição do Phytoervas Fashion. O evento tinha a proposta de apresentar os trabalhos dos novos talentos da moda no Brasil.
Durante uma edição do Phytoervas Fashion a estilista Vera Arruda recorreu à Carmen Miranda para acessar o nacionalismo, pois este era um momento no qual o campo prestigiava a temática nacionalista, que adquiriu espaço e aceitação.
Vera era reconhecida como uma estilista de caráter artesanal e romântico, e com foco na brasilidade em suas coleções de roupas femininas. Ela levou para a passarela peças inspiradas na imagem exuberante da cantora.
Vestido Carmen Miranda, uma peça em malha de veludo estampada com pele de onça. O vestido foi usado na abertura do desfile.
Fonte: www.uol.com.br
Adereço que acompanha o vestido Carmen Miranda. Ele foi produzido com flores, frutas, pássaros e outros balangandãs referentes à cantora.
Fonte: www.uol.com.br
No ano de 1996 a idéia de estabelecer um calendário oficial de moda no Brasil foi finalmente concretizado com a criação do Morumbi Fashion Brasil – Calendário Oficial da Moda.
No edição verão 2000 do Morumbi Fashion, o país, outra vez, virou a grande tendência. A semana que teve 23 marcas desfilando, aproveitou-se de um momento no qual o Brasil ganhou visibilidade internacional, através das modelos, e dos estilistas nacionais. O ano de 2000 foi batizado de "euforia brasileira" pela jornalista Erica Palomino.
O desempenho e a visibilidade da modelo Gisele Bündchen contribuíram para esse período. Além de Gisele, a presença de uma delegação de jornalistas internacionais e a Copa do Mundo também influenciaram o uso de temas nacionais pelos estilistas. Desta maneira, o Morumbi Fashion impregnou-se de nacionalismo e o distribuiu entre os seus participantes.
O país virou tendência na cenografia, na música dos desfiles e nas estampas, nas cores e na sensualidade das coleções. Nesse contexto, a Forum, uma grife precursora no quesito marca de propagação nacional assumindo valores brasileiros, escolheu Carmen Miranda para representá-la.
A coleção desenvolvida pela Forum aproveitou-se da mistura de materiais que compunham a imagem da cantora. Algumas peças da marca eram mais coloridas com estampas de cajus, carambolas e bananas, numa proposta alegre, outras, tinham o predomínio do preto e branco, numa proposta elegante. A Forum também ofereceu brilho, sandálias plataformas e largas pulseiras de plástico ou douradas. Acessando a figura da artista a marca evocou um símbolo da identidade nacional para os brasileiros e para os estrangeiros.
O multicolorido das frutas, das pulseiras e dos brilhos trazia Carmen Miranda para a passarela.
Fonte: http://www.terra.com.br
A Forum também deu destaque a sensualidade explorada pela artista. Durante a apresentação da coleção, as modelos embaladas por sambas cantados por Carmen, desfilavam mini tops que deixavam as barrigas à mostra. Era uma referência ao quesito sensualidade, o qual expressava mais um elemento que caracteriza a cantora e o Brasil.
O mini top brilhante que deixa a barriga de fora reproduz a figura de Carmen Miranda.
Fonte: http://www.terra.com.br
Em janeiro de 2001, o calendário oficial da moda brasileira abarcou um novo percurso, seguiu para o espaço da Fundação Bienal e foi batizado com o nome de São Paulo Fashion Week – Calendário Oficial da Moda Brasileira. O novo nome seguiu um padrão da imprensa internacional em batizar os calendários com o nome da cidade na qual eles são realizados, no caso do Brasil, em São Paulo.
Segundo o organizador do evento Paulo Borges: Conquistamos a posição de maior evento em retorno de mídia do país, ficando atrás somente do futebol. São mais de 250 horas de transmissão em televisa, mais de 2500 páginas dos jornais e revistas, milhões de acessos à internet e page-views com recordes de audiência nas cessões de vídeo na rede, batendo até mesmo a visitação nos canais de transmissão do carnaval.
A estruturação do campo da moda no Brasil proporcionada pelo São Paulo Fashion Week conectando os agentes do campo, concentrando idéias e conceitos, e sendo referência para orientação dos diversos seguimentos do setor, deu novo fôlego aos questionamentos do que seria a moda brasileira, e de qual seria sua estética e identidade.
Na edição inverno 2009 do São Paulo Fashion Week o evento ofereceu como tema “brasileirismos”. O mote discorria sobre características brasileiras, enfatizando a alegria. O evento propunha um estilo de vida brasileiro generalizado e estereotipado.
Para o sociólogo britânico Antony Giddens:
Um estilo de vida pode ser definido como um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo adota não só porque essas práticas satisfazem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto-identidade.
O estilo de vida é uma escolha que segue uma linha e permite expressão e distinção. Para apresentar ao público o estilo bem humorado que marca o brasileiro, a imagem de Carmen Miranda foi mais uma vez acionada. A cantora foi eleita “a musa do estilo e da graça” , e ganhou uma exposição para comemorar o centenário de seu nascimento.
Foram apresentados ao público “os trajes exóticos, os altíssimos sapatos de plataforma, os chapéus, turbantes, e os acessórios extravagantes”, de uma artista que apesar dos percalços em sua trajetória de representatividade brasileira, incontestavelmente, tornou-se referência de Brasil. Ela adquiriu esse status ao apropriar-se, no rádio e no cinema, de dois outros símbolos nacionais, o samba e a baiana, além de divulgar na mídia o clichê do estilo de vida bem humorado do brasileiro.
Imagens da exuberância e bom humor de Carmen Miranda escolhidas para ilustrar a exposição sobre a artista, na edição inverno 2009 da São Paulo Fashion Week. Fotos: Elizete Menezes.
Fonte: Redação Antenna Web
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