ENTREVISTA

NORVAL BAITELLO JUNIOR
     

 

ENTREVISTA ANTENNAWEB
NORVAL BAITELLO JUNIOR

Nessa edição da Antennaweb entrevistamos Norval Baitello Junior, que fez o doutorado em comunicação na Freie Universität Berlin, é titular da PUC/SP  e  desde 2007 e coordena a área de comunicação e ciências da informação da Fapesp. Trabalha na contextualização da produção cientifica, tecnológica e artístico-cultural, em temas ligados à teoria da comunicação, corpo e cultura, iconofagia, imagem, semiótica da cultura, teoria da mídia e escalada da abstração.

Enquanto o mundo voa a milhares de quilômetros por hora, algumas pessoas, como Norval, conseguem voar ainda mais alto e ao mesmo tempo viver com o pé no chão, respirar fundo e analisar com calma de onde viemos e para onde vamos, com muita sabedoria e muita esperança. Entre outras coisas, essa entrevista mostra que sonhar é bom, sonhar com um mundo bom é melhor, e contribuir para que o mundo de amanhã seja efetivamente melhor... não tem preço.

Existe uma visão segundo a qual estamos na "Era da Iconofagia". O que é exatamente a iconofagia? Quais as principais características dessa era?

Iconofagia significa a devoração das imagens ou pelas imagens: corpos devorando imagens. ou imagens que devoram corpos. Essa ambigüidade é interessante porque, na verdade, os dois processos ocorrem. A Era da Iconofagia significa que vivemos em um tempo em que nos alimentamos de imagens e as imagens se alimentam de nós, dos nossos corpos.

Esse processo ocorre quando passamos a viver muito mais como uma imagem do que como um corpo. Viramos escravos das imagens: temos que ter um corpo que seja uma imagem perfeita, temos que levar uma vida vivida em função da imagem, temos que ter uma carreira que seja uma imagem perfeita. Com isso, de repente notamos que o corpo como entidade original da vida passou a ser uma imagem e, portanto, não ter mais vida própria.

Isso não é assustador?

Isso é profundamente assustador: temos patologias comprovando essa realidade, e o numero de enfermidades provocadas pela coerção das imagens vem crescendo. Antes as enfermidades eram por conta apenas do stress e da correria extrema. Hoje elas não são só dessa natureza; elas são distúrbios. denominados pelos médicos como distúrbios da imagem corporal, tal como bulimia, anorexia, etc. Esse problema é tão sério a ponto de alguns governos começarem a proibir a exibição de imagens extremamente delgadas como padrão de beleza, como por exemplo o que está acontecendo na França.

Mas essas patologias não estariam mais restritas a uma pequena parte específica da população, como por exemplo o pessoal do mundinho fashion?

Não significa que todo mundo tenha essa doença, mas uma boa parcela da população já a demonstra: na moda, na política, na profissão, por exemplo, dá-se muito mais importância à aparência, pois ela gera visibilidade, que é uma exigência imperativa para o sucesso e, no fundo, para a sobrevivência. Portanto, as proporções dessa hipertrofia da imagem já se tornam bastante assustadoras.

Ainda falando sobre a Era da Iconofagia: de onde viemos e, em sua opinião, para onde vamos?

Eu sou de opinião de que o simples fato de tomarmos consciência disso, já é o fato de pisarmos no freio, e um retorno é possível. Estamos num desequilíbrio ecológico no qual não apenas a nossa sobrevivência psíquica, mas também a sobrevivência física esta ameaçada. Mas isso tem volta; essa volta depende de todos nós, das famílias, dos pais, dos amigos e do grupo social, mas também depende individualmente de cada um de nós.

Nosso grupo de pesquisas, o CISC* vem investigando esse problema há mais de 10 anos, em diálogos com uma porção de pesquisadores estrangeiros, e a hipótese mais plausível é que a hipertrofia da visão em relação aos outros sentidos (audição, tato, olfato e paladar) gerou um desequilíbrio. A mídia investiu na causa da hipertrofia da visão e da imagem; aliás, não sabemos se é uma causa ou uma conseqüência. As maquinas da imagem se desenvolveram bem mais rapidamente do que as maquinas de som, e com isso se desvalorizou o som de um modo geral ou, pelo menos, essa hipertrofia foi ocupando o espaço dos outros sentidos tradicionais. Acreditamos que essa hipertrofia da imagem está na raiz do fenômeno da iconofagia.

CISC =             Centro Interdisciplinar de Semiótica da cultura e da mídia, fundado em 1992 a partir de proposta de Norval Baitello Junior, é um centro de pesquisa, que hoje tem pesquisadores no Brasil todo, contando com mais de 20 professores-doutores em seus quadros. Privilegiou na investigação da comunicação os aspectos que resgatam a comunicação enquanto processo vivo entre seres vivos.

 

Mas esse fenômeno é tão intenso e tão disseminado que fica um pouco difícil imaginar uma volta...

Nós vivemos num momento de tamanha intensidade do poder da imagem que é verdade isso que você diz. Mas precisamos observar os pequenos indícios de saturação, pois esses excessos já estão sendo percebidos, como por exemplo o caso de um outdoor, que há 50 anos atrás já seria capaz de chamar atenção e, hoje, para chamar a atenção são necessários mais de 1000 outdoors. De um modo geral, as pessoas já não enxergam mais a imagem; já se cansaram dela.

O segundo indicio que mostra a saturação da iconofagia é que, já há algumas décadas, alguns teóricos vêm falando da emergência de uma cultura do ouvir, na qual o sentido da audição passa a ser novamente valorizado. Vai se valorizar de novo o silêncio e a presença, uma vez que a audição requer um pouco mais de proximidade do que uma tela de outdoor ou um computador. Nossos olhos já estão cansados e, por outro lado, as interfaces de computador que obedecem a comandos sonoros verbais já estão bem avançadas. Outro sinal é de que as pessoas começam a cultivar pequenos espaços do encontro; marcar horas, reservar horários para conversas. O desenvolvimento de aparelhos para ouvir vem crescendo muito mais do que as mídias imagéticos

Que tipo de aparelhos seriam esses?

A explosão do celular seria um deles. Podemos dizer que vivemos numa ditadura do tempo real. É uma mídia invasiva, pois toca quando quer. e a gente o carrega sempre junto, interrompendo assim nosso cotidiano a qualquer momento. Apesar disso é uma explosão de sucesso mundial.

O consumo desenfreado de imagens acompanha o consumo desenfreado de bens? Qual o paralelo entre esses dois fenômenos?
Na verdade o consumo desenfreado de imagens exige o consumo desenfreado de um suporte: precisamos de um aparelho que exiba essa imagem, como a TV ou o computador. Numa época se valoriza a tela pequena, em outra as telas maiores, que se aproximam do cinema. Tem a ver, de fato, com o possuir.

A voz é mais fugaz. Uma conversa se esvai quando não é gravada. Uma carta (que é visual, escrita sobre um suporte, assim como uma fotografia) fica. Os meios de conservação de voz são menos difundidos que os de imagem. Nossos celulares não costumam gravar sons, mas gravam imagens.

A transcrição de voz nunca consegue transmitir a essência de um dialogo. A voz, as pausas, as entonações, isso não se transcreve. Uma imagem pega sutilezas que,  para transcrever, necessitaria, de mais de 100 palavras. A tradução do som para o visual é uma tradução muito mutiladora. Por conta disso, a gente prefere o contato direto. Caso contrário precisaria de um filme ou uma gravação que transmitisse o som.

Então não fica muito difícil trabalhar o som?

Essa é desvantagem do som, mas também é a vantagem. Isso vai exigir que tenhamos tempo para parar e ouvir as pessoas. Os pais que não têm tempo para ouvir seus filhos vão colher frutos muito amargos. Nós devemos criar um pensamento, uma ecologia da comunicação, dos ambientes comunicacionais que estamos gerando. Que mundo a nossa pratica comunicacional de hoje vai trazer daqui a 20 ou 30 anos? Que mundo estaremos criando para as nossas crianças, mantendo essa velocidade e esse império das imagens?

Aparentemente vem havendo uma mudança profunda em todo o software e provavelmente isso influencie até mesmo o hardware humano num médio e longo prazo. As pessoas têm hoje uma capacidade de consumo de imagens infinitamente superior à que tinham há vinte anos. Quais as mudanças que você vê no modo de vida e no relacionamento entre as pessoas que devem acontecer?

Nós vivemos na Era da Mídia, e a Era da Iconofagia é um subproduto da Era da Mídia. No momento em que a imagem com a qual convivemos não é mais a imagem sagrada, como era até o Renascimento, quando as pessoas iam a igreja ver imagem. Não é mais a imagem artística, que as pessoas iam ver em museus, do Renascimento até o inicio do século XX. Hoje a imagem vai às pessoas, e quem a leva é a mídia, não apenas cinema, TV e. Radio, mas também a moda.

A moda vai até as pessoas e as pessoas carregam a moda. O vestir não é mais meramente funcional, como era antes – estar protegido para o dia-a-dia, para a labuta, com as roupas durando 10 anos. Hoje as pessoas carregam uma “não coisa” com a roupa: esse vestir funcional é revestido de uma função estética permanente. E aí, tudo acaba sendo penetrado, todos os espaços acabam sendo perfurados, permeáveis à mídia, e portanto a mídia tem um enorme poder de persuasão das pessoas. E a própria mídia pode ser um fator chave para o retorno da humanidade aos outros sentidos.

Como seria o papel da mídia nesse retorno?

Começamos a ver uma transformação bastante radical na distribuição da mídia. Enquanto está defendendo seu próprio interesse, de expansão econômica, ela não esta olhando para o outro, que é o consumidor. Com isso, ela não está contribuindo para uma sustentabilidade desse outro, que vai se cansar dessa insistência e num momento qualquer de saturação acabará por abandona-la.

Isso de certa forma já está acontecendo com os jornais e as revistas. O excesso gera o cansaço, o desinteresse. Hoje não basta que um jornal se ofereça como noticia. Oferece brindes, cinemas, CD´s, DVD´s, etc. Hoje já não há mais publico para sustentar uma ascendente desses veículos. Essa expansão foi planejada de forma errada, não se pensou numa forma sustentada de crescimento do sistema.

E como seria o papel da tecnologia de informação nesse processo?

Os computadores são a ponta da Iconofagia. Como são extremamente ágeis, eles ajudam a distribuir imagens com uma eficácia enorme. Só não são perfeitos porque não é todo mundo ainda que tem computador, mas esse quadro irá se reverter em pouco tempo. É como o Brasil, que tem TV´s em quase todos os domicílios, apesar de ter grande parte da população estar abaixo da linha de pobreza. Isso vai facilitar a distribuição de imagens, mas também dos hábitos de resistência. A mídia tem um papel essencial tanto para o bem como para o mal

Qual a relação entre filosofia, semiótica e cultura e como essa relação interfere na comunicação pessoal e comercial nos dias de hoje?

Eu poderia falar sobre a filosofia da comunicação. Hoje vem crescendo a tendência dos estudos da comunicação de repensar fundamentos, raízes, cenários e relações em maior profundidade, e não os que levem em conta apenas a funcionalidade imediata das coisas. Isso possibilitou o surgimento de pensadores muito críticos, muito agudos, que enxergam as coisas muito mais longe: os filósofos da comunicação.

Um exemplo muito caro a brasileiros é o de Vilém Flusser, que viveu no Brasil por mais de 30 anos, aqui aprendeu e aqui se fez, e partiu para um segundo exílio na Europa. Deixou  uma obra que vem sendo sucessivamente reeditada na Europa, e que vem sendo traduzida para o mundo inteiro. É um dos exemplos da teoria da comunicação que ignora as teorias funcionalistas que pretendiam propor um conceito de comunicação imbuído de neutralidade, segundo a qual a comunicação não afetaria a qualidade de vida das pessoas.

Como você imagina o mundo daqui a 20 anos?

É difícil de imaginar, a gente imagina do jeito que a gente deseja: um mundo muito mais caloroso, muito mais sereno, com espaços de convívio otimizados, uma cidade que privilegie o encontro, e não o desencontro. A comunicação entendida como um incentivador da proximidade humana

 

Ping-Pong – reaja às seguintes imagens

Comunicação...
Espaço de vínculos.
Corpo...
O ponto de partida e o ponto de chegada de toda comunicação.
Imagem...
Uma superfície, a presença de uma ausência.
Cidade...
Um ambiente complexo de vida.
Imaterial...
É a tendência para abstrair o corpo.
Lixo...
É o reino mais rico que a civilização produziu.
Roupa...
Segunda inteligência comunicativa do homem, apenas depois da pele.
Não Coisa...
Novos seres que habitam o planeta.
Moda...
Sistema social de mídia que nos obriga a nos voltar para o corpo.
Violencia...
Há duas violências, a bruta e a lapidada. A bruta agride fisicamente, a lapidada é a violência do mundo das imagens.
Consumo...
É aquilo que nos consome.
Dinheiro...
É um sistema semiótico, e portanto a primeira mídia de massa do homem.
Prazer...
A consciência do corpo.
Sexo...
É a primeira forma de percepção do “outro”.
Sonho...
A raiz mais importante da cultura humana.
Futuro...
A projeção do eu em seus próprios sonhos.
Liberdade...
É o exercício do sonho.
Felicidade...
É o ambiente ideal do sonho realizado.

 
 

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